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  • Foto do escritorDra. Fátima Santiago

As mulheres que escrevem vivem perigosamente


Hoje, Dia Mundial da Poesia, publico um poema da poetisa Sylvia Plath que remete para mais do que túlipas. Como todo o bom poema, o tema é mais complexo do que parece e esta particularidade torna a poesia singular e especial enquanto forma de arte. E hoje é a arte que celebramos.



As túlipas


As túlipas são demasiado sensíveis; é inverno aqui. Vê como tudo está branco, silencioso e calmo. Deitada, isolada e calma vou apercebendo a quietude enquanto a luz incide naquelas paredes brancas, nesta cama, nestas mãos. Não sou ninguém; nada tenho a ver com sobressaltos. Entreguei o meu nome, as minhas roupas de sair às enfermeiras, a minha história ao anestesista e o meu corpo aos cirurgiões.


Apoiaram-me a cabeça entre as almofadas e a dobra do lençol como um olho entre duas pálpebras brancas que jamais se fecham. Estúpida pupila, ela que tem de estar atenta tudo. As enfermeiras vão e vêm, não perturbam, passam com as suas toucas brancas como gaivotas voando para terra, com as mãos sempre ocupadas, todas idênticas, sendo assim impossível dizer quantas são.


Para elas o meu corpo é um seixo, tratam-no como a água trata os seixos sobre os quais corre, polindo-os suavemente. Trazem-me o torpor nas suas agulhas reluzentes, trazem-me o sono. Neste momento perdi-me, estou cansada das minhas bagagens... A minha maleta de couro como uma caixa de pílulas negra, o marido e a filha sorrindo-me do retrato de família; os seus sorrisos penetram-me na pele, como pequenos anzóis sorridentes.


Deixei a vida correr, um velho cargueiro com trinta anos agarrando-se obstinadamente ao meu nome e endereço. Limparam-me de todas as minhas associações afectivas. Aterrada e nua sobre a maca acolchoada de plástico verde vi o meu serviço de chá, as minhas cómodas de roupa branca, os meus livros afundarem-se até os perder de vista, e a água cobriu-me a cabeça. Sou uma freira agora, nunca fui tão pura.


Não queria flores, apenas queria estar prostrada com as palmas das mãos para cima e ficar toda vazia. Como me sinto livre sem que ninguém faça ideia da libertação... A paz é tão intensa que nos entorpece e nada exige em troca, uma etiqueta com o nome, algumas bugigangas. Aquilo a que finalmente os mortos se agarram; imagino-os introduzindo-as na boca como se fossem hóstias.


Mais do que tudo o vermelho intenso das túlipas fere-me. Mesmo através do papel de celofane as ouvia respirar suavemente, por entre as suas faixas brancas, como um bebé medonho. A minha ferida corresponde à sua cor rubra. São subtis: parecem pairar, embora me esmaguem, perturbando-me com as suas línguas súbitas e a sua cor, uma dúzia de vermelhos pesos de chumbo em volta do meu corpo.


Nunca alguém me vigiara, vigiam-me agora. As túlipas voltam-se para mim, assim como a janela donde, uma vez por dia, a luz se espraia e esvai lentamente, e vejo-me, estendida, ridícula, uma sombra de papel recortado entre o olhar do sol e o olhar das túlipas, e, sem rosto, quis apagar-me. As túlipas plenas de vida comem-me o oxigénio.


Antes de elas virem todo o ar era calmo, entrando e saindo, sopro a sopro, sem alvoroço. Então as túlipas encheram-no com um forte ruído. O ar agora embate nelas e redemoinha como um rio embate e redemoinha num engenho imerso e vermelho de ferrugem. Chamam a minha atenção, que era felizquando se entretinha e descansava despreocupadamente.


Também as paredes parecem animar-se. As túlipas deviam estar atrás de grades como animais perigosos; abrem-se como a boca de um felino africano, e é ao meu coração que estou atenta: ele abre e fecha o seu vaso de florescências vermelhas pelo puro amor que me tem. A água que saboreio é quente e salgada como o mar, e vem de um país tão longínquo como a saúde.


Sylvia Plath Pela Água tradução de Maria de Lurdes Guimarães Assírio & Alvim 1990




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